Teofilocências e montesclarências



Para Nestor Sant'Anna

Montes Claros, norte de Minas Gerais, 9h da manhã de uma quarta-feira de sol.
Éramos eu e mais sete universitários do curso de Jornalismo, do quinto ao sétimo períodos, esperando o início do processo seletivo para uma vaga de estágio em uma das cinco maiores empresas de saúde animal do planeta. Sentado em um banco acolchoado na entrada do auditório, esperava ansioso. E lembrava dos meus últimos sete dias frente àquele que poderia ser o meu primeiro ingresso profissional no mundo da comunicação.

Soube da vaga por meio de um anúncio fixado no mural de informações do campus da faculdade. Logo fiz a inscrição e iniciei uma maratona de pesquisa sobre a empresa. Para isso, adiantei todos os meus trabalhos a serem entregues no período em que o processo seletivo seria realizado.  

Acessei o site da instituição para saber mais sobre a sua história, produtos e conquistas. Li dezenas de notícias e matérias na imprensa, incluindo entrevistas do presidente e de seus diretores. Uma coisa me chamou mais a atenção: a relação da empresa com a comunidade. Essa interação forte só era possível por conta do olhar sensível do então presidente à causa social. Esse olhar também se estendia, primordialmente, aos colaboradores. 

Fomos recebidos pela equipe de Recursos Humanos e pelo assessor de Comunicação da presidência, o jornalista Nestor Sant’Anna. Atencioso com todos, foi ele quem conduziu todo o processo seletivo e escolheria o estagiário para compor o que seria a primeira turma da assessoria de comunicação da empresa. Antigamente, esses trabalhos eram centrados na Gerência de Marketing, que fica na capital paulista.

Após assistir ao vídeo institucional, cada um dos candidatos se apresentou e desfilou seus expoentes curriculares. Tive de vencer minha timidez para sobressair àquele mise-en-scène dos concorrentes. Falar bem de si mesmo pode ser fácil, mas a prática pode ser implacável em mostrar o contrário. Como meus pais me ensinaram, nesses momentos, uma colher de humildade, discrição e, principalmente, de verdade, não faz mal a ninguém.

Sob os olhares da gerente de Recursos Humanos e do Nestor, escolhi continuar com os pés no chão: disse que estava no quinto período do curso de jornalismo, que era um leitor voraz, gostava de escrever e tinha sede de aprender mais. Fora isso, tinha experiência zero com Comunicação. Estava desempregado há três meses e meu emprego anterior era de secretário administrativo em uma associação de empregados de uma grande empresa. E que, mesmo me preocupando em fazer o melhor que podia lá, eu não era feliz.

O silêncio que se fez na sequência me fez pensar que eu havia acabado de perder aquela oportunidade de trabalho. Mas o destino me reservava uma grata surpresa. Logo após a “entrevista coletiva”, nos posicionamos nas cadeiras do auditório para escrever um texto sobre o tema que logo nos foi revelado: “A relação entre a empresa e a comunidade”. Exatamente o assunto que havia me dedicado a estudar na última semana. Em 20 minutos, entreguei meu texto e saí. Eram quase 11h da manhã.

Fui para casa, almocei e me preparava para retomar os estudos da faculdade quando, pouco depois das 14h, recebo um telefonema do próprio Nestor informando que eu havia sido selecionado para a vaga do estágio. Na segunda-feira seguinte, às 13h, comecei a trabalhar na empresa. Foi lá que aprendi tudo sobre assessoria de imprensa, organização de eventos, produção editorial, revisão de texto, relacionamento com clientes, stakeholders, colaboradores, imprensa.

Foi lá que tive contato com projetos sociais que me permitiram ver o próximo de outra forma. Foi lá que deixei de ser um jovem sonhador para ser um comunicador de verdade. E isso não teria acontecido se o Nestor não tivesse cruzado o meu sertão.

Produtor cultural, escritor, músico, pai, marido, avô, cidadão do mundo.
A obra, o trabalho e a presença de Nestor trouxeram mais força
e qualidade à cultura de Minas


Nascido Nestor Coelho de Sant’Anna em Teófilo Otoni, Vale do Mucuri, ele sempre foi um homem inteligente e elegante, na vida e na profissão. Sabe a hora certa de falar o que precisava ser ouvido. E faz isso com classe, seriedade e, quando o momento pede, bom humor.

Ele jamais chamou a minha atenção na frente de outras pessoas. Nas poucas vezes em que fiz algo que merecia mais dedicação – talvez por conta da pouca experiência profissional -, ele me pedia reflexão. “Avalie os acontecimentos, levante possíveis soluções, teste sem medo e atente-se aos detalhes”, dizia. Este era o caminho para entregar o melhor.

Foi com Nestor que aprendi que, em uma empresa, gente é ponte. E o outro lado da travessia é o trabalho bem feito. Também me aconselhou que local de trabalho não é mesa de bar. Basta uma frase sobre sua vida pessoal e você estará para sempre na boca de todos. Toda revelação tem um preço, e o que as pessoas cobram é que continue alimentando-as sobre os vales escuros ou iluminados do interior de si. A plateia, viciada no espetáculo alheio, quer mais e mais. E não mede esforços em te aplaudir ou vaiar – na mesma ou em maior intensidade. 

Foi Nestor que trouxe minha atenção para a música popular brasileira e, principalmente, a de Montes Claros, minha terra natal. Descobri que a minha cidade era uma fonte inesgotável de cultura e arte e abracei tudo isso. Entre congados, religiosidades e bandeiras, entre o arroz com pequi e a carne de sol, a música regional e a literatura, havia a memória, a história e a tradição do povo de antes.

“Menos Michael Jacksons e Madonnas”, dizia Nestor. E mais Minas, Darcy Ribeiro, Mestre João, Trem Mineiro. Mais Babaya, Anthonio, Tabajara Belo, Milton Nascimento. Mais Hermes de Paula e Yvonne Silveira, dois grandes historiadores de Montes Claros. E eu, mais mineiro e brasileiro do que nunca, fui além dos conselhos do Nestor: surfei entre Bethânias e Gilbertos, Drummonds e Guimarães Rosas. E, assim, fui renovando minhas veredas interiores.

Nestor me apresentou uma Minas Gerais que eu não conhecia, um Brasil que me esperava ao som das Bachianas no 3 de Villa Lobos. E eu agradeço a generosidade em me indicar esse bom caminho. Essa é uma grande sensibilidade que ele tem: Nestor não mede esforços em ajudar alguém quando identifica nele algum potencial. Ele me apontou a direção e eu descobri que, no meu sertão, o limite era o mundo.

Como na primeira vez em que embarquei no trem da comunicação, pelas mãos do Nestor, agora é por ele que faço essa homenagem em comemoração aos seus 75 anos. Que você, caro mestre, busque a serenidade todos os dias, no exercício da simplicidade e do afeto, da humildade e da fé, assim como você ensinou a todos nós. E saiba que desse seu eterno pupilo e estagiário (que lhe é muito grato), guardarei sempre a gentileza de me mostrar que a “coragem sempre vence as pedras desafiadoras da criatividade e da competência”. 

Você, nesse seu ninho afetivo de acolhimento, histórias, vivências e pensamentos, nos trouxe reflexões, desafios, sorrisos cadenciados, evolução. Ensinou-nos que, antes de vencer o mundo, temos de derrubar os inimigos que existem dentro de nós. Que ética e caráter não são produtos à venda. E que a vida, como uma canção que ternamente nos embala, não pode parar. 


Luciano Lopes, jornalista e editor do Colcha de Letras.